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A PROPRIEDADE INTELECTUAL NOS CONTRATOS DE REVENUE SHARE NA INDÚSTRIA DE GAMES


Quando escrevi sobre a tributação nos contratos de revenue share1, modelo de parceria negocialbastante explorado na indústria de jogos eletrônicos, invariavelmente o tema da propriedade intelectual vinha à tona, o que é plenamente justificado. A PI ou IP (Intellectual Property), como muitos chamam neste meio, é parte essencial em negócios de base criativa, especialmente nos empreendimentos de desenvolvimento de games, umprodutocomposto por criações das mais variadas (roteiro, personagens, ambiente, sound design, código-fonte, mecânica, game design, etc.).

Não raro vemos estúdios de games falando sobre “a nossa IP” com uma conotação inteiramente comercial/marketing, sem qualquer recordaçãoda origem jurídica desse termo (ainda que estas facetas sejam umbilicalmente conectadas). A propriedade intelectualé uma artificialidade jurídica que a sociedade criou para permitir que bens intangíveis/intelectuais, que possuem uma dispersão natural e imediata em razão de sua natureza2, pudessem ser apropriadas exclusivamente por seus criadores - aqueles que empregaram seus esforços, tempo e dinheiro no desenvolvimento de algo. A PI, portanto, cria a escassez que gera o valor comercial destes bens intelectuais.

Hoje, o mundo jurídico da propriedade intelectual é composto por uma série de institutos (direitos autorais, marcas, patentes, programas de computadorentre outros) que protegem específicas criações/obras, conforme definido em legislações próprias. No entanto, a PI também contempla outros aspectos que não decorrem necessariamente destes institutos específicos, mas sim da proteção da lealdadeconcorrencial, conforme padrõesde cada mercado, e das obrigações assumidas pelas as partes em um contrato.


Nesse sentido, essas questões de PI devem (ou ao menos deveriam) estar minimamente endereçadas em um contrato de revenue share utilizado para a exploração de um jogo eletrônico. Contrato este que, em uma explicação breve, pode ser compreendido como uma parceria negocial para que dois ou mais empresas/profissionais assumam funções diferentes em um projeto comum de desenvolvimento e comercialização de um game, o que é feito mediante o aporte de diferentes ativos, muitos deles protegidos por institutos da PI. Com o desenvolvimento deste jogo, composto por criações de diferentes partes, os parceiros comerciais dividem os lucros decorrentes da exploração comercial do projeto (“revenue share”).


Após essa explicação, fica fácil perceber porque um contrato de revenue share deverá ter disposições que tratem especificamente dos direitos de PI, afinal, temos um produto, composto por uma série de elementos de PI de diferentes titularidades, que também pode fazer nascer uma PI própria do projeto final. Nesse contexto, percebemos desde já um campo fértil para situações de disputas sobre esses direitos que, se não estiverem definidas no contrato, podem afetar drasticamente o sucesso do negócio, como por exemplo:


- Se uma das partes contratantes decide abandonar o projeto no meio, com quem ficam as contribuições já feitas por ela?


- Se uma das partes contratantes é convidada a inserir as suas criações em um produto de terceiros fora do projeto do Contrato, isso é permitido? Haverá o rateio de receitas também?


- Se houver uma continuação do game, todas as partes contratantes do projeto original deverão integrar a equipe para o novo projeto?


- Pode uma das partes contratantes trabalhar em um jogo concorrente daquele descrito no contrato?


- Se uma das partes contratantes utilizou-se, sem autorização, da PI de terceiros para entregar a sua contribuição ao projeto e isso se tornou objeto de litígio, como ficam as responsabilidades das demais partes contratantes?

Enfim, diversos são os cenários (muitos deles reais – vide os casos do The Witcher3 (Andrzej Sapkowski vs. CD Projekt)e do Fallout Shelter4 (Bethesda vs Warner Bros e Behaviour Interactive),que demonstram a importância de estabelecer, ainda que minimamente, cláusulas que regulem a PI nos contratos de repartição de receitas.

Assim, elencamos abaixo algumas cláusulas indispensáveis para um instrumento contratual desse tipo

1. Cessão ou licenciamento das criações de cada parte contratante

A mais relevante de todas as cláusulas de PI em um contrato de revenue share é a definição de que todas as partes contratantes que contribuem para o projeto devem licenciar (“emprestar”) ou ceder (“transferir definitivamente”) os direitos de PI de sua contribuição para aquela que ficará encarregada de explorar comercialmente o game desenvolvido. O mais usual é que seja celebrada uma licença, eterna, gratuita ou remunerada (dependendo do modelo de remuneração acertado) e restrita ao objeto da parceria (desenvolvimento e exploração de um game).

A importância disso se dá exatamente para agregar segurança e estabilidade ao projeto, pois nenhuma das partes poderá, posteriormente, reivindicar uma compensação maior para a exploração comercial do jogo ou a suspensão deste por uso desautorizado de suas criações (exceto em situações extraordinárias). Especialmente no Brasil, onde as legislações de PI protegem bastante os criadores, a previsão de uma cláusula expressa desse tipo é indispensável para a saúde do projeto.

Da mesma forma, se uma das partes decide desistir do projeto, o licenciamento de suas contribuições deverá seguir em vigor (salvo por infrações contratuais) – o que pode ser ajustado por meio de uma remuneração reduzida ou por outra estrutura a ser aplicada na relação contratual. Pode ser estabelecido, ainda, que aparte desistentemanteráo direito de revogar a licença concedida, mas mediante o pagamento de algum tipo de compensação às partes remanescentes em face às mudanças que precisarão ser feitas. Enfim, as possíveis modelagens desse tipo de cláusula são diversas.

2. Responsabilidade pela PI aportada

Muitos dos participantes de um contrato de revenue share são estúdios que contam com equipes formadas por diversos criadores/autores. A PI que essaempresadisponibiliza ao projeto decorre, na verdade, das criações individuais desses membros do seu time – os quais deverão, por meio de seus contratos de trabalho ou de prestação de serviços, ceder todos os direitos de suas criações em favor de quem os remunera para o exercício dessa atividade criativa/inventiva (o estúdio).

Portanto, é importante que o estúdio contratante tenha a sua “casa” devidamente regularizada, do contrário, os membros de sua equipe poderão futuramente reivindicar direitos sobre a PI utilizada em determinado projeto em razão da inexistência de um termo de cessão de direitos firmado com seu estúdio. Isso colocaria em risco não só a continuidade do projeto do contrato de revenue share, como também tornaria as outras partes contratantes potencialmente responsáveis pelos pleitos desses colaboradores, uma vez que foram beneficiárias diretas do uso dessas criações.

Assim, é extremamente aconselhável que contratos de revenue share contenham garantias acerca da legitimidade e titularidade para uso da PI disponibilizada pelo estúdio contratante, assumindo este integral e exclusiva responsabilidade por eventuais danos decorrentes de irregularidades relacionadas a isso.


3. Produtos derivados do projeto

Outra cláusula importante, que deve estar prevista nesse tipo de contrato aqui discutido, regulará como se dará a exploração de produtos derivados do game desenvolvido. Falamos de roupas, bonecos de pelúcia, álbum de músicas, entre outros itens que podem ser explorados pelas próprias partes ou por meio de licenciamento com terceiros.


Dessa forma, será importante definir quais as regras que nortearão a exploração comercial desses produtos derivados, inclusive permitindo o sublicenciamento das criações a terceiros pelo líder comercial do projeto. Será importante, outrossim, estabelecer o formato de remuneração – se isso seguirá o share original previsto para a receita do game ou se haverão formatos específicos para cada tipo de produto derivado.

4. Créditos

Uma das principais recompensas da atividade criativa é o reconhecimento de autoria – não há dúvida disso. Além de massagear o ego dos criadores, a indicação de quem é o criador de determinada obra serve de vitrine e status para os estúdios envolvidos. É bastante corriqueiro que, em determinados projetos e por interesses estratégicos, uma das partes tenha mais interesse em ter seu nome vinculado a algum player importante do mercado do que no recebimento de parte das receitas do empreendimento.


Assim, é bastante relevante que o nome da parte contratante apareça nos créditos do projeto. Apesar disso ser uma obrigação legal para determinadas criações (direito autoral moral) – o que independe de uma cláusula contratual - no contrato e possível estabelecer regras mais específicas para tais fins (ex.: logotipo do estúdio deve aparecer na tela de entrada do game com uma sonoridade específica).


5. Sigilo e confidencialidade

Em projetos que englobam o desenvolvimento e a exploração comercial de um jogo eletrônico, é frequente que as partes contratantes tenham acesso a informações valiosas dos seus parceiros, como, por exemplo: o método utilizado para desenvolver determinada funcionalidade; a base de dados de distribuidores para o jogo; a estratégia de precificação; etc. Algumas dessas informações compõem o ativo do negócio daquela parte, podendo fazer parte da configuração de um segredo comercial/segredo de negócio – um conjunto de dados e informações que, isoladamente não gozariam de uma proteção específica de um instituto da PI, mas que, na forma como estão organizados, representam um diferencial competitivo da empresa.

Logo, é comum e esperado que se definam regras de sigilo e confidencialidade entre as partes do contrato de repartição de receitas, com a previsão de multas pesadas pelo descumprimento, além de uma série de outras medidas (ex.: exclusão do projeto, pagamento de perdas e danos, etc).

6. Não concorrência e antialiciamento


Por fim, trouxemos aqui duas cláusulas que, apesar de não serem tão comuns em contratos de revenue share para games, dependendo do formato do negócio e dos players envolvidos no projeto podem ser vitais à sobrevivência do estúdio. Tratam-se de cláusulas que se referem muito mais a comportamentos de concorrência leal do que de direitos de PI específicos.

Falamos das cláusulas de não concorrência (as partes envolvidas com o projeto não poderão explorar produtos que concorram com o negócio do projeto) e de antialiciamento de membros da equipe (as partes não poderão contratar pessoas chave de outro estúdio que conheceram no decorrer do projeto comum).


As cláusulas de não concorrência são importantes para que todas as partes entreguem o seu melhor no desenvolvimento e exploração comercial do projeto e, em especial, para que os envolvidos não se utilizem do know how adquirido com o empreendimento comum para explorar uma iniciativa própria e sem a divisão de receitas com seus parceiros anteriores. Isso é extremamente valioso quando existe certa assimetria na contribuição de cada um, trazendo maior segurança àqueles que destinam contribuições maiores para o projeto comum.

Usualmente são definidos prazos para essa obrigação de não concorrência (1, 2, 5 anos após o lançamento oficial do projeto). Também é aconselhável estabelecer limites para essa obrigação – normalmente as partes que participam de contratos de revenue share vivem de fazer jogos eletrônicos, e estes são naturalmente concorrentes (por vezes o consumidor terá a mesma satisfação ao jogar um FPS ou um MOBA). Logo, é comum que a esse tipo de cláusula estabeleça um tipo de jogo (MOBA, FPS, Puzzle, etc.) que não pode ser explorado de forma independente por uma das partes contratantes (ao menos sem a anuência prévia e expressa de todos).


Com relação à cláusula antialiciamento, trata-se de regra comum entre médios e grandes estúdios, que ficam receosos de perder sua mão de obra qualificada para parceiros contratantes que passaram a conhecer as pessoas mais habilidosas da equipe de seus concorrentes. A perda de um profissional chave pode até colocar em risco a contribuição da parte no projeto comum, gerando justa causa para sua exclusão, mais uma razão que alimenta o uso de cláusulas desse tipo.


As cláusulas aqui mencionada representam uma pequena amostra das diversas composições contratuais relacionadas a aspectos de PI e de concorrência que podem e, em determinados casos, devem estar presentes em contratos de revenue share utilizados na indústria de games. Estamos tratando de negócios que têm nestes ativos criativos o seu principal diferencial e valor, logo, a previsão contratual de regras claras e equilibradas em torno destes é estratégia vital para o sucesso de projetos do tipo.


Ademais, vivemos uma época em que a relação contratual entre empresas está cada vez mais delineada pela autonomia da vontade das partes – isto é, a liberdade para a confecção de cláusulas em um contrato é bastante ampla, por força do que prevê a Lei da Liberdade Econômica5. Portanto, dedicar-se à construção de um contrato bem feito, que poderá ser inteiramente executado e cobrados das partes contratantes, é estratégia vital para negócios complexos como estes do universo de games.


2 Como disse certa feita Thomas Jefferson: “If nature has made any one thing less susceptible than all others of exclusive property, it is the action of the thinking power called an idea, which an individual may exclusively possess as long as he keeps it to himself; but the moment it is divulged, it forces itself into the possession of every one, and the receiver cannot dispossess himself of it. Its peculiar character, too, is that no one possesses the less, because every other possesses the whole of it. He who receives an idea from me, receives instruction himself without lessening mine; as he who lights his taper at mine, receives light without darkening me”



5Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal: VIII - ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública;

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