A TRIBUTAÇÃO DAS PREMIAÇÕES EM TORNEIOS DE ESPORTS
Neste delicado momento gerado pela pandemia da COVID-19, um dos poucos segmentos de competição desportiva que se manteve em plena atividade foi o de esports. Isso se deu graças ao ambiente dessas competições — o mundo digital — que permitiu que atletas, de suas casas ou escritórios, competissem com outros jogadores sem que estivessem fisicamente presentes no mesmo local.
Não é à toa que diversos recordes foram batidos neste recente período. O CBLOL registrou um recorde 336 mil espectadores simultâneos em Junho deste ano. Na mesma época, o streamer Gaulês, conhecido por suas transmissões de torneios, teve em uma única sessão, narrando o jogo entre as organizações MIBR e Evil Geniuses que competiam pelo torneio Blast Pro Series Spring Finals, mais de 390 mil pessoas assistindo simultaneamente.
Ao mesmo tempo em que a indústria cresce, as premiações (prize pools) de torneios também acompanham essa evolução. Este ano, o evento The International de DOTA2 já conta com uma premiação de mais de USD 34 milhões — a maior de sua história e, ainda, uma quantia que ultrapassa os prêmios de torneios tradicionais como Copa Davis, Daytona 500, entre outros. Na carona do cenário profissional, inúmeros torneios e ligas de esports amadores têm surgido neste período, boa parte dos quais também com prize pools a serem divididas entre os competidores vencedores.
Essa combinação de fatores traz à tona uma discussão que, apesar de não ser nova, ganha novos contornos no mundo dos esportes eletrônicos: a tributação sobre as premiações recebidas em torneios. O que veremos no decorrer desse artigo é que o assunto, que já era complexo, torna-se ainda mais espinhoso quando transportado a um ambiente em que pode haver uma miríade de elementos estrangeiros, como ocorre no mundo dos esports.
TORNEIOS REALIZADOS NO BRASIL OU CUJA PREMIAÇÃO É PAGA POR FONTE BRASILEIRA
No Brasil, até pouco tempo atrás, as dúvidas recaíam sobre a natureza das verbas recebidas a título de premiação de competições, haja vista o disposto no art. 676 do Decreto 3000/99 (revogado pelo Decreto nº 9580/18) e no art. 14 da Lei 4506/641. A leitura destes artigos gerava dúvidas com relação ao termo “concursos desportivos”, que alguns ainda tendiam a interpretar como um efetivo torneio de esportes (mesmo que o Parecer Normativo CST nº 173/74 já tivesse esclarecido que se tratava de concurso de apostas feito em certame desportivo). Todavia, em 2012 a Receita Federal emitiu a Solução de Divergência nº 09, pacificando tal discussão e mostrando o seu entendimento no seguinte sentido:
(i) Os prêmios de torneios desportivos pagos a pessoas físicas (em dinheiro ou bens e serviços), cujo pagamento está vinculado à avaliação de desempenho dos competidores, assumem aspecto de remuneração de trabalho e, dessa forma, o imposto de renda devido sujeita-se a tal regra e deve ser recolhido pela fonte pagadora (organizador do torneio), conforme a tabela progressiva mensal (cujas alíquotas variam de 7,5 a 27,5%);
(ii) Os prêmios de torneios pagos a pessoas jurídicas serão contabilizados como receita na escrituração contábil da empresa beneficiária, não havendo obrigação para a retenção do imposto na fonte pagadora;
Se os beneficiários residirem no exterior, a retenção do imposto é exclusiva na fonte e suas alíquotas são de 25% (pessoa física), 15% (pessoa jurídica) e 25% (pessoa jurídica residente em país com tributação favorecida — “paraísos fiscais”).
As regras acima, por sua vez, aplicam-se aos prêmios pagos em torneios de esportes eletrônicos cuja fonte pagadora é de origem brasileira. Vejam, portanto, que as organizadoras de torneios possuem a obrigação de retenção do imposto de renda devido na maior parte dos casos, compromisso este que, todavia, não é tão conhecido assim.
Não suficiente, é importante lembrar também da incidência de Imposto de Serviço (ISS) nas taxas cobradas pelas organizadoras de torneios para inscrição de competidores. Referido imposto pode ser de até 5%, conforme o município sede da organizadora e o enquadramento tributário da empresa.
A este respeito, inclusive, destaca-se a recente e temporária vitória judicial obtida pelo BSOP2, o maior torneio de poker no Brasil (que também é considerado um esporte). A empresa que organiza referido evento foi autuada pela Prefeitura de São Paulo, a qual cobrava o pagamento de ISS e multas pelo não recolhimento do tributo sobre todo o valor arrecadado a título de inscrições. Na justiça, o BSOP teve uma decisão de primeiro grau que reconheceu que o ISS só incide sobre a parte da inscrição destinada à própria organizadora, e não sobre o montante que será destinado à premiação do evento.
TORNEIOS REALIZADOS NO EXTERIOR OU CUJA PREMIAÇÃO É PAGA POR FONTE ESTRANGEIRA
Hoje, no Brasil, por incrível que pareça, o tratamento tributário concedido à premiação de torneios desportivos parece nos trazer mais certezas do que dúvidas, o que seria um excelente ponto (ressalvado o fato de ainda ser um imposto), caso não estivéssemos falando de esportes eletrônicos. Como havia mencionado acima, os esports são explorados em um ambiente dotado de inúmeros elementos estrangeiros, a saber:
(i) grande parte das publishers (desenvolvedoras / distribuidoras) dos games explorados como esports são estrangeiras e são elas, usualmente, que pagam as premiações;
(ii) a frequência de campeonatos de esportes eletrônicos no exterior é consideravelmente maior quando comparada com modalidades do esporte tradicional;
(iii) a possibilidade de torneios virtuais faz com que o envolvimento de organizadoras, equipes e jogadores de diferentes localidades e nacionalidades em um mesmo evento seja algo recorrente (quando as restrições técnicas da latência das conexões permite);
Logo, atendo-nos ao caso de organizações e jogadores brasileiros, não raro estes são sagrados vencedores em torneios no exterior ou em competições cuja premiação é paga por empresa estrangeira. É neste contexto, portanto, que surgem as maiores dúvidas e incertezas.
O primeiro ponto a ser destacado, por vezes desconhecido ou propositalmente ignorado por competidores de esports, é a sistemática de tributação de renda universal adotado pela Receita Federal brasileira (e pela massiva maioria de países). Isto é, por regra geral, toda e qualquer renda auferida por um brasileiro domiciliado no país ou por empresas brasileiras deverá ser tributada no Brasil, independente da origem do pagamento e do local da atividade exercida. Logo, a premiação paga por competição realizada no exterior ou por organizadora de torneios estrangeira será, em regra, tributada no imposto de renda brasileiro, conforme alíquotas e regras acima indicadas.
Portanto, a premiação recebida do exterior, mesmo que não tenha sido trazida ao Brasil, estará sujeita ao imposto de renda nacional. O fato do dinheiro ser mantido no exterior, ser transformado em criptomoedas ou ser mantido em uma e-wallet não afasta ou ameniza tal obrigação (só dificulta a descoberta de tal informação pela Receita Federal). Para que o competidor brasileiro, que não vive no Brasil, seja dispensado de recolher tais valores, ele deve realizar a declaração de saída definitiva do país.
Ocorre que, em boa parte dos países, inclusive no Brasil, por medida de simplificação e eficiência arrecadatória, as entidades fiscais determinam que o pagamento de prêmios de competições a não-residentes seja precedido da retenção pela fonte pagadora dos impostos devidos. Em um exemplo mais concreto: se o competidor brasileiro vai receber um prêmio pago por uma publisher estado-unidense, tal publisher é obrigada a reter 30% do valor a título de imposto de renda daquele país (e remeter tal valor para a IRS — Internal Revenue Service, a receita federal dos EUA).
Esse formato de tributação no local de origem do pagamento, além de uma estratégia para que as entidades fiscais nacionais tenham maior efetividade e controle na tributação, coincide com a lógica contida no art. 17 da Convenção Modelo da OCDE3. Referido dispositivo, utilizado como referência sugestiva aos acordos internacionais de cunho tributário, determina que, no caso de rendas auferidas por profissionais do entretenimento ou desportistas de um país, pagas por residente de outra nação, esta última poderá tributar tal operação.
Independente do fundamento, essa sistemática de retenção do imposto no país da fonte pagadora, analisada dentro de um ambiente internacional em que os países aplicam a teoria da universalidade (toda renda auferida pelo residente é tributada no seu país), faz surgir o indesejado fenômeno da bitributação.
Caso não existisse qualquer tipo de acordo (tácito ou explícito) entre o Brasil e os Estados Unidos, o competidor de esports do exemplo acima teria 30% dos seus ganhos retidos pela organizadora do torneio e, a partir do momento em que recebesse o pagamento, teria a obrigação de recolher o imposto de renda devido no Brasil (alíquotas de 7,5 a 27,5%). Em outras palavras, poderia ter 57,5% de seu prêmio destinado ao pagamento de impostos.
Felizmente, hoje em dia boa parte dos países têm celebrado entre si acordos para evitar a bitributação, ou aplicam os chamados tratamentos de reciprocidade. No primeiro caso, definem-se regras em um tratado internacional para que países abram mão do recolhimento de impostos feitos em outra nação ou dividam essa carga tributária entre eles, sem que o cidadão seja duplamente onerado. No caso de Brasil e Portugal, por exemplo, foi celebrado um acordo de bitributação bastante influenciado por aquele modelo geral da OCDE, no qual definiu-se que qualquer um dos países poderá tributar a renda relativa à premiação de um atleta, mas caso o país da fonte pagadora faça tal recolhimento, o outro deverá permitir que o contribuinte compense o valor pago a esse fim.
Diferente disso, Brasil e EUA não possuem um acordo do tipo. Contudo, entre tais nações existe um tratamento de reciprocidade, por meio do qual também se permite a compensação do imposto pago no estrangeiro com tributo devido no país de residência do contribuinte, caso seja demonstrado que tal tratamento também existiria na outra nação. No caso de Brasil e EUA, essa reciprocidade já é automaticamente reconhecida pela Receita Federal4 (aplicando-se apenas com relação a tributos federais), mas quando se trata de outro país será necessário ao contribuinte demonstrar que existe esse tipo de tratamento no sistema tributário daquela nação, sob pena de sofrer a dupla tributação.
Como vimos, o competidor premiado precisa estar atento a esses detalhes quando do recebimento de prêmios do exterior, não apenas para entender qual o potencial ganho líquido ao sagrar-se vitorioso, mas também porque essa compensação prescinde de procedimentos administrativos-fiscais e de cuidados documentais. Caso fique inerte ou adote procedimentos errados, é possível que acabe sendo mais uma vítima da dupla tributação de sua renda.
Portanto, como foi possível observar, infelizmente o imposto de renda incidente sobre as premiações de torneios desportivos pode ser bastante pesada, especialmente quando acrescentamos elementos estrangeiros à equação (sem falar nos custos para remessa/recebimento de valores ao exterior, nas taxas cambiais, e no usual prazo para recebimento de prêmios).
Por essa razão, além dos cuidados já citados acima (para organizadoras e competidores), é extremamente importante avaliar se a natureza do valor recebido é inteiramente a título de premiação, ou se existem outras verbas nele contidas (direito de imagem, royalties, etc.) que, eventualmente, podem ter um tratamento tributário mais vantajoso. A constituição de uma pessoa jurídica para determinados fins também pode ser uma alternativa que alivia o ônus fiscal existente na premiação de torneios de esports.
Ao final, contudo, o que mais chama atenção no tratamento tributário estendido às premiações de torneios de esportes eletrônicos é a sua conflitante natureza com à dinâmica desse mercado, um ambiente em que aspectos territoriais tornam-se irrelevantes e onde elementos estrangeiros estão permanentemente presentes.
1 Art. 14. Ficam sujeitos ao imposto de 30% (trinta por cento), mediante desconto na fonte pagadora, os lucros decorrentes de prêmios em dinheiro obtidos em loterias, mesmo as de finalidade assistencial, inclusive as exploradas diretamente pelo Estado, concursos desportivos em geral, compreendidos os de turfe e sorteios de qualquer espécie, exclusive os de antecipação nos títulos de capitalização e os de amortização e resgate das ações das sociedades anônimas.
2 Vide notícia em <https://www.gamesbras.com/poker/2020/7/3/bsop-traz-importante-vitoria-juridica-para-poker-brasileiro-18224.html>, acesso em 28/08/2020.
3Article 17 ENTERTAINERS AND SPORTSPERSONS
1. Notwithstanding the provisions of Article 15, income derived by a resident of a Contracting State as an entertainer, such as a theatre, motion picture, radio or television artiste, or a musician, or as a sportsperson, from that resident’s personal activities as such exercised in the other Contracting State, may be taxed in that other State.
2. Where income in respect of personal activities exercised by an entertainer or a sportsperson acting as such accrues not to the entertainer or sportsperson but to another person, that income may, notwithstanding the provisions of Article 15, be taxed in the Contracting State in which the activities of the entertainer or sportsperson are exercised.
4 Ato Declaratório SRF nº 28/2000.